Uma utopia sobre política e o estado perfeito

A República, livro escrito por Platão há cerca de 2,4 mil anos, foi produzido de forma didática como uma série de diálogos entre Sócrates, Glauco, Polemarco, Trasímaco, Adimanto e Céfalo, sendo considerado  uma utopia criada pelo filósofo  grego, que idealizou uma espécie de estado ideal, que deveria ser governado por homens  justos,  sábios  e instruídos.  Para ele, o homem capaz de reunir essas qualidades seria o filósofo e o melhor regime a República numa democracia.

Na vida real,  o filósofo grego teve a  oportunidade de fazer esta  experiência de gestão política por três vezes, mas por coincidência todas elas fracassadas, quando atuou como conselheiro de Dionísio, que nada tem a ver com o Deus grego do vinho, então tirano de Siracusa, no sul da Itália, que fazia parte da Magna Grécia.

 Na República,  Platão passa em revista todos os sistemas de governo existentes na época e analisa sobretudo a aristocracia, a oligarquia,  a democracia e a ditadura, que ele denominou de tirania. Vale lembrar que no seu imaginário, a criação do Estado  perfeito segue uma tríplice direção: a produção, a defesa e a gestão da coisa pública. Neste  tripé, o sistema produtivo abrange a agricultura, a indústria e o comércio;  já o terceiro eixo proposto visa a gestão do próprio governo, que administra os bens do estado e viabiliza a comercialização e a organização social mediante leis justas e adequadas.

O livro é dividido  em 10 capítulos  sequenciais. O primeiro deles fala da economia e da justiça, com foco na  utilidade das riquezas e na falsa definição da Justiça e refutação, tratando das diferenças fundamentais  entre o homem justo e feliz em contraponto com o injusto e infeliz. Trasímaco chama, em um dos diálogos, a atenção de Sócrates para o fato de que “em qualquer circunstância, o homem justo leva a pior quando em  confronto com o injusto”, que ganha até pagando menos impostos e tributos que o justo.

A segunda parte da obra trata da  origem da lei, a história do anel Giges e da questão do  mau e hipócrita, discutindo também sobre a opinião do povo sobre o justo e o injusto. Ele apresenta  um plano de fundação de um estado, que se organiza porque ninguém se basta a si mesmo, além da questão da educação dos defensores ou guerreiros para a proteção do estado e o bem que tem origem na divindade.  Sócrates aborda a questão das grandes fábulas, compostas por Hesíodo, Homero ou outros grandes poetas, “autores dos contos falsos que eram contados e são narrados até hoje a todos.”

 Os poetas, a ficção e a mentira, centralizam o debate do terceiro livro, que aborda também  a questão do ensino da música, do  amor, dos bons juízes, da prática dos exercícios físicos – ginástica – e do caráter do bom governante.  Fala ainda das raças de ouro, de prata e de ferro e que os guerreiros não devem possuir riquezas, pois os defensores do estado devem deixar de ladoqualquer outra ocupação para dedicar-se escrupulosamente à liberdade do estado, sem nada fazer que não vise este objetivo. Os guerreiros seriam impedidos de ter propriedades e de participação na vida política da sociedade, mas seriam mantidos em todas as suas necessidades e demandas com recursos do Estado.

Neste debate, Sócrates faz referências a esculápio, o pai da medicina, que tinha uma visão considerava que não valia a pena curar quem não conseguisse viver o tempo que lhe seria natural,  porque sua sobrevivência se configuraria inútil para ele próprio e para o Estado em termos de custo e investimento social, uma visão que contrapõe ao politicamente correto proconizado em nossos dias, quando a saúde é um dever do estado e um direito do cidadão.

A riqueza e a pobreza, os  limites do Estado, ocupam a discussão do quarto  livro, que  também cuida do culto aos deuses, do homem justo e do estado justo, bem como da sabedoria, da coragem e  da temperança, estabelecendo conceitos e  a definição da justiça e da injustiça. No debate, Sócrates defende que um bom sistema de educação e cultura formaria cidadãos de boa índole, que se tornariam melhores que os seus predecessores contribuindo para o aprimoramento da sociedade.

 No livro quinto,  o tema educação das mulheres, além da questão da  superioridade dos homens e  inferioridade do sexo feminino, do casamento e da depuração da raça  pura,  evidenciam algumas contradições consideradas inaceitáveis nos dias atuais ao lado  do infanticídio. São também colocadas em debate a questão das mulheres na guerra, a guerra e a escravidão, além do novo estado e da nova República, com destaque para o papel dos filósofos no estado, o que se soma à discussão sobre o conhecimento.

Quanto a guerra, Sócrates, que tem uma ampla participação nas discussões apresentadas no livro, observa que existem dois nomes para a guerra e a discórdia: “me parece que existem duas coisas diversas correspondendo a dois tipos de desavença, uma é a parentela e a diversidade de raça, a outra a raça estranha e o sangue diverso. A inimizade entre parentes é designada como discórdia, e aquela entre estranhos é chamada guerra.”

 A qualidade do governante e por que o filósofo deve pleitear o governo verdadeiro, estão na agenda do sexto livro, onde são definidos os perfis do verdadeiro sábio e os conceitos da justiça e do bem. Sócrates aponta para Adimanto, que numerosas e poderosas causas concorrem para a corrupção.  As discussões envolvem ainda o panorama do mundo visível e o panorama do mundo ideal, que se contrapõem entre si.

Fica evidenciado ainda nos diálogos do livro, que “outras coisas, os chamados bens materiais corrompem e desviam, como a beleza, a riqueza, a força física, as relações sociais e assim por diante”. Outra observação é de que quem está interessado em contemplar a essência das coisas não tem sequer tempo para se envolver com as vicissitudes humanas e encher-se de inveja e rancor,  acabando por litigar com os seus próprios semelhantes.

 A alegoria da caverna aparece no sétimo livro, ao lado da questão da educação dos futuros governantes e  da importância da matemática e da astronomia. A escolha dos governantes, a participação das crianças na guerra, as provas para preparação dos guerreiros e a idade para se assumir o governo  também aparecem como temas relevantes no debate onde fica evidenciado que “ se dominarem a política os esfarrapados com fome de propriedade privada, na esperança de conseguir lucros fabulosos, um bom governo não será possível”.

Sócrates questiona sobre a quem você obrigaria proteger ao Estado, senão àqueles que, melhor instruídos na arte de governar e da guerra, que gozam de outras honras e vivem vida mais preciosa que aquela do homem político.

O capítulo oitavo  tem como tema as diferentes formas de governo aristocracia, democracia, oligarquia e a ditadura, mostrando como se processa de forma gradual a passagem da aristocracia para a timocracia, um sistema de governo onde preponderam os ricos, bem como  da timocracia para a  oligarquia, que tem os  seus perigos . Tudo se complementa com a passagem da oligarquia para democracia, destacando  a vantagem de democracia em relação aos demais sistemas e o risco para que ela descambe para uma tirania e ditadura.

Platão observa que num estado governado à perfeição tudo deve ser comum : as mulheres, os filhos, a educação em conjunto, bem como as ocupações na paz e na guerra e os melhores em filosifia e na arte da guerra devem ser os soberanos. De forma dialética, o livro salienta que como tudo o que nasce se corrompe, a organização do Estado não é eterna e vai se desagregar com o tempo.

Em que pese o destaque da importância da democracia, a República traz um alerta para os tiranos, lembrando que “um chefe, quando se encontra diante de um povo submisso, não se abstém de empapar-se de sangue semelhante ao seu. Mediante falsas acusações, como acontece quase sempre, arrasta seus partidários para os tribunais, macula-se com delitos tirando a vida de alguns , saboreando com a sua  língua impura de sangue semelhante ao seu. Sempre que manda ao exílio e manda matar, propondo  depois aos outros a supressão das dividas e nova distribuição das terras.”

 Os perfis do homem democrático surge no nono livro,  que também fala do tirano,  da razão e da alma,  do prazer e da dor, com uma reflexão metafísica sobre  a parte divina da alma  e da utopia da república ideal. Sócrates diz acreditar que um homem se torna um tirano quando por natureza, por hábito ou por causa dos dois fatores, “torna-se beberrão, apaixonado e louco”. Mas, sem dúvida, o pior homem é aquele que  talvez desperto, age com quem está sonhando, ou seja, atuando de modo esdrúxulo e antisocial.

O último capítulo faz referência à essência das coisas, assim como aos poetas que dão colorido às palavras e às frases, dinamizando a toda arte, sem saber fazer outra coisa que imitar, com suas ficções prejudiciais, mostrando em paralelo as recompensas reservadas à virtude. Platão aborda a questão da imortalidade da alma, em que os  justos recebem as recompensas dos deuses e dos homens, o que se complementa com a visão do outro mundo, do céu e do inferno com seu fogo eterno incorporado depois pelos cristãos e a reencarnação, que é um tema tratado hoje pelos espíritas.

Sócrates diz no seu último discurso, que “se vocês me derem crédito, se estiverem convencidos de que a alma é imortal e é capaz de suportar todo o bem e o mal,  haveremos de percorrer sempre a via elevada e praticar de todos os modos a justiça junto com a prudência”, como uma alternativa para a caminhada de mil anos rumo à felicidade nesta terra.

 A República de Platão pode ser sumarizado como um livro complexo que pode ser de utilidade para filósofos, políticos, cientistas sociais e planejadores urbanos, como uma reflexão sobre a sociedade e embute  uma critica aos vícios existentes na mesma, mas que se refletem nos governos, nos atos dos gestores e nos  modos de vida que levam a degradação das instituições. O livro  questiona ainda o modo de fazer política e de ser dos políticos, com as mazelas emergenciais que afetam o estado e a sua gestão, além de servir como um aprendizado a mais é que a velhice traz consigo um grande paz e ensina ao homem a se liberta dessas coisas. Será? (Kleber Torres)

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